sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Farmácias em risco de ficarem sem medicamentos em Novembro | iOnline

Farmácias em risco de ficarem sem medicamentos em Novembro | iOnline

Ofício da ANF está a gerar o caos nas farmácias. “Só ficamos sem remédios se a indústria recusar”, diz João Cordeiro.

É uma diferença de 20 dias mas está a gerar o caos. A Associação Nacional das Farmácias (ANF) decidiu adiar a partir do próximo mês a data em que transfere para as farmácias as verbas correspondentes às comparticipações dos remédios assumidas pelo Estado. De acordo com um ofício a que o i teve acesso, em vez de chegarem dia 20 de Novembro, só vão chegar a 10 de Dezembro. Sem este crédito, a maioria dos farmacêuticos não consegue pagar aos fornecedores e fazer novas encomendas, disseram ao i fontes do sector.
A informação foi transmitida num ofício enviado terça-feira pela ANF às suas associadas, a maioria das farmácias em Portugal. No documento explica-se que esta medida visa pôr fim à situação “imoral” em que a indústria farmacêutica aceita que o Estado pague aos laboratórios a 90 dias ou mais, exigindo prazos inferiores às farmácias. Para cumprir esse calendário, uma vez que o Estado não paga com a rapidez necessária ao sector (demora no mínimo 90 dias), as farmácias recorrem à banca, individualmente e através da ANF. “O sector [...] tem estado a suportar elevado custo financeiro com empréstimos bancários permanentes, que têm servido para financiar a indústria farmacêutica, permitindo-lhe conceder prazos de pagamento mais longos ao Ministério da Saúde”, lê-se no ofício.
Na manifestação do último sábado, que mobilizou 6 mil pessoas, o presidente da ANF, João Cordeiro, anunciou que o sector iria reivindicar a dilatação dos prazos de pagamento das farmácias aos seus fornecedores de 30 para 90 dias. O ofício, contudo, apanhou os farmacêuticos de surpresa: a pressão será feita com a arma da ruptura de fornecimento do mercado apontada à cabeça. Questionado pelo i, Cordeiro foi peremptório: “Só ficamos sem medicamentos se a indústria recusar fornecer às farmácias e grossistas o mínimo de condições que oferece ao Estado.”
Mas alguns farmacêuticos vêem o ultimato como o empurrão para o abismo e não como uma solução. O risco é disparar o número de farmácias com fornecimentos suspensos (já são 1131) e falirem mais depressa as 600 que a ANF diz estarem em perigo. “É uma eutanásia colectiva”, diz ao i um farmacêutico.
A estratégia da ANF, descrita no ofício, é que as farmácias exijam prazos de 90 dias aos seus fornecedores, os grossistas. Fontes do sector são consensuais ao afirmar que a dilatação neste elo na cadeia (ver ao lado) só será possível se a indústria aceder ao pedido, já que a distribuição “não tem capitais próprios, nem capacidade de recurso à banca para assumir sozinha o tempo pedido pelas farmácias”. Já a reacção da indústria nunca poderá ser imediata, dado que envolve auscultar mais de cem laboratórios.
O i sabe que a incerteza sobre o que irá passar-se nas próximas semanas está a levar as farmácias com maior capacidade a reforçarem as encomendas para evitar ficar sem stocks caso toda a cadeia se desmorone, como aconteceu na Grécia. Alguns farmacêuticos temem que os laboratórios limitem as unidades vendidas por receio de que esta corrida signifique que mais embalagens estão a ser exportadas em vez de servir para abastecer o mercado, prática de “rateio” que tem vindo a ser usada para conter a exportação paralela.
Da cadeia do medicamento à decisão da ANF: tudo o que precisa de perceber
Como é que os medicamentos chegam às suas mãos?
Os laboratórios vendem remédios a empresas de distribuição (grossistas), que por sua vez fornecem as farmácias. Assim, as compras aos laboratórios são feitas_em quantidade por um intermediário que garante melhor preço às farmácias_do que a compra directa.
Qual é o problema?
Os laboratórios exigem que_os grossistas paguem as encomendas a 30 dias e por sua vez os armazéns pedem o mesmo às farmácias. Acontece que até 50% da facturação das farmácias não entra logo em caixa: o Estado só reembolsa o sector com o valor das comparticipações (descontos garantidos pelo Estado) a 90 dias.
Como é que as farmácias gerem isso?
Financiarem-se apenas na banca não seria suficiente, por isso a maioria paga 1,5% da facturação à Associação Nacional das Farmácias para ter direito a uma antecipação das verbas.
É aí que está o problema?
Sim, mas já tinha começado antes com a quebra na facturação – há 1131 farmácias num universo de 2900 com fornecimentos suspensos em pelo menos um armazém. Até aqui a ANF pagava ao dia 20 (a 20 dias),_o que permitia às farmácias cumprirem os prazos de pagamento nos fornecedores (grossistas) e manterem os canais de encomendas abertos. Agora a ANF decidiu passar o pagamento para os 40 dias, o que impedirá as farmácias de liquidar facturas.
Se ninguém nesta cadeia ceder, vão faltar mais remédios no mercado no próximo mês.
Qual é o objectivo da ANF?
Medidas implementadas nos últimos meses como a revisão em baixa das margens legais praticadas na venda dos remédios (o que podem cobrar acima do preço praticado pelo laboratório) e quebra nos preços na fábrica – sobretudo nos genéricos, cuja venda passou a ser mais comum com prescrição universal por substância activa – tornaram o negócio das farmácias insustentável face aos encargos fixos. Cada vez são menos cobertos pela facturação, situação agravada pela dificuldade de acesso a financiamento na banca. A ANF tem apelado ao governo por correcções na austeridade mas, enquanto não chegam, quer pressionar a indústria a partilhar o ónus da crise. Se os laboratórios aceitarem receber a 90 dias como fazem nos hospitais, toda a cadeia pode respirar. O problema é que só as poucas farmácias com grande capacidade de facturação resistirão a um braço-de-ferro prolongado.
Há alternativas?
Os grossistas poderiam aceitar aguentar a corda enquanto a indústria não cede. Fontes dizem no entanto que a degradação do sector e a dificuldade de financiamento não o permite pagar aos laboratórios se não receberem a tempo das farmácias. O Estado poderia intervir e passar a pagar directamente às farmácias a 30 dias, mas precisa de ter 100 milhões disponíveis mensalmente.
O risco de ruptura de remédios apanha todas as farmácias?
Num cenário sem cedências, pouco provável por muito tempo, fontes do sector estimam que apenas as farmácias que facturam muito (só 15% gera mais de 2 milhões de euros) consigam ter margem suficiente para cumprir com os custos fixos e repor stocks. Estas poderão comprar remédios à indústria (com maior prejuízo para o seu negócio). Pode também haver um cenário em que um utente chega a uma farmácia e diz estar disposto a pagar o remédio na íntegra. A farmácia poderia encomendar e pagar a pronto mas os armazenistas, por não pagarem aos laboratórios, podem ficar com fornecimentos suspensos e não conseguir responder.

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