quinta-feira, 22 de novembro de 2012

Investigação. Conheça a história de "A Vida é Bela" que virou pesadelo | iOnline

Investigação. Conheça a história de "A Vida é Bela" que virou pesadelo | iOnline

De produto do ano em 2011 a empresa à beira do colapso em 2012. A história do empresário que revolucionou os presentes em Portugal.

Em 2001, as torres gémeas em Nova Iorque caíam e o governo de António Guterres demitia-se. António Quina, futuro vendedor de sonhos dentro de caixas, era sócio-gerente de uma empresa de publicidade – um castelo de cartas prestes a desabar. Num espaço de 24 horas, viu-se obrigado a despedir mais de duas dezenas de funcionários. “Foi o pior dia da minha vida. De virtualmente rico passei a realmente pobre”, contou o fundador de “A vida é bela” numa entrevista ao i em 2010.
O empresário deu a volta e depressa se tornou num caso de sucesso, citado vezes sem conta na imprensa como um exemplo de empreendedorismo em tempo de crise. Numa noite de 2002, depois de ver o filme “A vida é bela” de Roberto Benigni, António Quina teve a ideia que lhe viria a resgatar a carreira: vender experiências dentro de caixas. Dez anos depois da fundação da empresa – que se tornou líder de mercado e se expandiu para Espanha e para o Brasil –, a mesma imprensa que o aclamou como vendedor de sonhos transformou-se numa ameaça séria: em Setembro, surgiram as primeiras notícias a dar conta de que proprietários de hotéis, restaurantes e de outros serviços que faziam parte dos pacotes “A vida é bela” estariam a recusar-se a aceitar os vouchers, alegando dívidas por saldar. Em menos de nada, a empresa que fez sonhar milhares de portugueses foi apanhada no meio de uma espiral sombria. Os parceiros, desconfiados, cancelaram os contratos. Seguiu-se uma corrida em massa à devolução dos vouchers. Quase um milhar de portugueses fizeram queixa à DECO. Os produtos foram retirados do mercado e “A vida é bela” anunciou a suspensão da operação da linha de experiências em Portugal. Em apenas um mês, o império desabou.
Em 2002, António Quina, desempregado, começou a sondar bancos. Precisava de alguém que acreditasse no projecto. Depois de bater a dezenas de portas e de receber negas sucessivas – porque a ideia de vender experiências era novidade absoluta – um gerente aceitou emprestar-lhe 40 mil euros. Só havia uma contrapartida: comprar um faqueiro de prata. O empresário, que mal tinha dinheiro para comer, desfez-se dele passado um mês e deitou mãos à obra. Contratou cinco amigos desempregados, pintou as paredes de um espaço alugado em Lisboa por 300 euros e tornou-se, oficialmente, no primeiro empresário do mundo a vender experiências.
“A vida é bela” prometia realizar todos os sonhos, mesmo os mais impossíveis. E por medida, se fosse preciso. Além dos vouchers com propostas convencionais – estadias em hotéis, consultas de tarô, sessões de SPA ou jantares gourmet –, Quina inventou experiências bem mais extravagantes: voar num balão de ar quente por 74,90 euros; conduzir um Ferrari F430 num circuito profissional por 149,90 euros ou na Toscânia; passear pela cidade numa limusina Hummer; mergulhar com golfinhos ou embarcar numa aventura espacial.
A fórmula resultou quase imediatamente e, a pouco e pouco, os portugueses mudaram a maneira de dar presentes. Os livros, os discos e os entediantes chocolates passaram à história: foram substituídos por uma caixa de plástico vermelha que prometia centenas de experiências à escolha de quem a recebia. “Há um antes de “A vida é bela” e um depois de “A vida é bela”, uma mudança na maneira como os portugueses compram e oferecem presentes”, dizia, no início deste ano, a directora de marketing Margarida Reis, quando se assinalaram os dez anos da empresa.
Apesar do sucesso, António Quina nunca teve secretária e recusa-se a usar gravata. Sempre gostou de fazer as reuniões de trabalho num catamarã topo de gama com 15 metros de envergadura, estacionado marina de Oeiras. Quina, o terceiro filho em segundas núpcias de um engenheiro aeronáutico, nasceu no Bairro Alto, em Lisboa. A mãe é de Leiria e o avô paterno foi um médico reputado no Estoril. A seguir ao 25 de Abril, a família partiu para um exílio. Primeiro para Bilbao, depois para o Rio de Janeiro. Quando voltou a Portugal, António Quina tinha oito ou nove anos. Estudou Direito, mas nunca acabou o curso. Empregou-se no sector náutico, influenciado pela família, que sempre manteve o gosto pelos barcos. Chegou mesmo a lançar uma revista sobre o tema. Mais tarde, viria a gerir uma empresa de congelados e uma outra, pioneira em Portugal, na área dos programas de motivação de vendas.
Ainda no ano passado, a vida parecia correr de feição ao empresário. Fez uma viagem de barco pelas principais marinas entre os trópicos do Atlântico Central e anunciou, para 2014, uma volta ao mundo que duraria cinco anos. Tinha razões de sobra para estar descansado: no ano anterior, em 2010, “A vida é bela”, que entretanto se internacionalizara, facturou 17 milhões de euros em Espanha (onde é líder do sector) e 24 milhões em Portugal – mais 100% que em 2009. “E esperamos continuar a crescer em 2011”, confessava o empresário numa entrevista. Quina chegou a admitir que tinha como meta para o próximo ano atingir uma facturação de 200 milhões de euros. “O mercado de presentes tem estado com crescimentos exponenciais em todos o mundo”, contava ao Negócios. Entretanto, casou. Foi a Paris de propósito para pedir a namorada em casamento, depois de nove meses de namoro. Para recriar uma espécie de conto de fadas, alugou um carro de 1911 e, à passagem por Montmartre, ofereceu-lhe o anel.
Mas a espiral de infortúnio aproximava-se. Os problemas terão começado com uma tentativa mal sucedida de expansão da empresa para o Brasil. A aproximação ao mercado falhou e Quina confessou-o numa entrevista em Julho deste ano. A falta de experiência e de preparação terão estado na origem do fracasso. Na mesma altura, o empresário deixava antever, ainda que ligeiramente, que o negócio já tinha tido melhores dias. “Sentimos a crise como qualquer empresa, as vendas baixaram, mas procuramos encará-la de forma positiva”, contou. “A vida é bela” viu-se forçada a cortar o número de colaboradores para metade.
Depois de os últimos acontecimentos terem saltado para as páginas dos jornais, “A vida é bela” reconheceu os casos dos vouchers recusados e prometeu resolver o problema. Mas a DECO diz que já recebeu 900 queixas e que ultimamente não consegue contactar a empresa. Num comunicado, “A vida é bela” justifica-se com quebras de 50% nas vendas do Natal do ano passado e diz que agora, por causa das notícias publicadas, se registou mais uma redução da ordem dos 85%. Os parceiros, os jornalistas e os portugueses em geral abandonaram o barco.
Há mais razões que explicam o fim do império, segundo a empresa: o aumento das taxas de juro, a redução dos plafonds de crédito aos bancos, o aumento da taxa de redenção (utilização) dos cupões e uma dívida do Estado que ascende a mais de dois milhões de euros de reembolsos do IVA e pagamentos de fundos comunitários já aprovados e contratualizados. Por tudo isto, a empresa diz ser “impossível” continuar em Portugal e suspendeu a actividade. Caiu o império dos sonhos. “Vejo as coisas como se fossem ondas e uma onda não é eterna”, dizia António Quina na entrevista que deu ao i, em 2010. Desta vez, não atendeu o telefone.

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