quinta-feira, 18 de abril de 2013

Estados Unidos. A guerra dos genes já está nos tribunais. O caso é histórico | iOnline

Estados Unidos. A guerra dos genes já está nos tribunais. O caso é histórico | iOnline

Supremo Tribunal de Justiça dos Estados Unidos começou a julgar caso histórico. Não faltou criatividade ao colectivo e aos advogados.


Um gene isolado é mais parecido com a folha de uma planta da Amazónia ou com um taco de basebol? Esta semana começou a ser julgado no Supremo Tribunal de Justiça dos EUA um caso que poderá abalar a indústria biotecnológica do outro lado do Atlântico, rejeitando patentes de um laboratório de dois genes ligados ao risco de cancro da mama e dos ovários.
Na sessão inicial, na segunda-feira, não se anteviu o veredicto, mas agora que a transcrição está disponível na internet pode pensar-se que o processo fará mais pela compreensão da ciência que muitas sebentas. A justiça é cega e não é doutorada em genética e não faltaram por isso analogias.
De um lado, o representante de 150 mil peticionários, entre cientistas e médicos, numa acção interposta pela União Americana pelas Liberdades Civis (UCLA), que pede a revogação de patentes sobre os genes BRCA1 e BRCA2, que dão à Myriad Genetics o monopólio de investigação e diagnóstico nesta área. Do outro, a empresa, que sustenta que este direito está consagrado na lei americana há três décadas e, em última instância, é uma garantia de inovação e protege investimentos da indústria até haver retorno comercial.
O Supremo Tribunal de Justiça americano foi chamado a pronunciar-se, depois de decisões contraditórias em tribunais menores. A questão de fundo é se genes - e não a tecnologias ou remédios criados a partir deles - devem ser patenteáveis. É a primeira vez que a dúvida chega à cúpula da justiça. Uma decisão favorável à UCLA poria em causa milhares de patentes - 20% dos genes humanos estão patenteados nos EUA. Por outro lado, libertaria a investigação e a medicina, defendem interessados no caso, como o Nobel da Medicina James Watson. Na imprensa americana há relatos de mulheres sem acesso a diagnóstico porque os seus seguros não cobrem os produtos da Myriad, que rondam os 3 mil dólares por teste.
OURO E BOLACHAS “Uma das formas de abordar este caso é perguntar o que é que a Myriad inventou? Nada”, começou o advogado da UCLA Christopher Hansen. “Desvendou segredos de dois genes. Merece reconhecimento, mas não patentes. Os genes, onde começam, de que são feitos, o que acontece quando estão errados, são decisões da natureza e não da Myriad.”
Se a retórica destrutiva chegasse, a sessão não teria um terço da piada. Mas os magistrados são pedagógicos: há muitas coisas obtidas na natureza e patenteadas, caso da aspirina sintetizada a partir do ácido da casca do salgueiro. “Implicou manipulação”, notou Hansen. Atribuir patentes aos genes seria como descobrir uma nova forma de fazer brincos de ouro e ter uma patente sobre o processo, mas também sobre o minério.
Não contente com exemplos minerais, o colectivo passou para a Amazónia: seria legítimo patentear uma folha por ser possível, a partir dela, tratar uma doença? Aparentemente não, concordaram acusação e defesa. Sonia Sotomayor - a famosa primeira magistrada hispânica - entrou então pela culinária. “Faço uma bolacha de chocolate usando ingredientes naturais: sal, farinha, ovos e manteiga. Se os misturar de forma inédita, posso ter uma patente. Não me parece que consiga patentear sal ou farinha por lhes ter dado um novo uso.”
Não há imagens, mas a transcrição regista os balbucios do advogado da empresa, Gregory Castanias. “Eram matérias separadas, mas antigas”, atira. “É o problema de usarmos analogias muito simplistas. Com todo o respeito, excelência, estarmos aqui a falar de carvão, folhas e esse tipo de coisas...”
TACO DE BASEBOL O colectivo não vacilaria: porque é que a composição do ADN isolado é diferente? “São 5914 nucleótidos [as letras genéticas] nas nossas sequências”, diz Castanias. O genoma completo tem mais de 3 mil milhões. Houve uma invenção na decisão de onde começar e acabar o gene. Não foi a natureza que nos deu isso.”
Teria de se render às analogias para aumentar a eficácia. Para o seu cliente, explicou, o gene isolado é mais parecido com um taco de basebol. “Não existe até ser isolado da árvore”, descreve. “É produto da invenção humana decidir onde começa e termina o taco.” Os juízes acalmam, mas persistem dúvidas: dizem os cientistas que é possível encontrar os genes BRCA não só nos laboratórios da Myriad, mas no corpo humano, até em células mortas. “O taco de basebol é diferente. Tem de ser inventado. Não tem de inventar um segmento de ADN, só tem de o cortar.”
Mas é que para o fazerem, defende Castanias, produziram uma molécula de ADN complementar (chamado cADN, ligeiramente diferente do natural), usando amostras de doentes até achar a sequência consensual. “Certo”, aceita o tribunal. “Mas o que está aqui em causa é a patenteabilidade do que sobra [o gene todo]”, diz um juiz. “Foi produto da invenção e representou usos novos”, diz Castanias. “O que está a dizer é que poderia patentear uma planta, porque encontrá-la exigiu esforço e capacidade de invenção?”, contra-ataca o colectivo.
Castanias não perde a pachorra: o argumento final da Myriad é que aquilo que extraiu é diferente do que existia antes, como comprova o facto de antes não ser usado em medicina. “Pensa então que a primeira pessoa que isolou cromossomas poderia ter tido uma patente?”, surpreende o colectivo. É que foi igualmente novo e útil. “Em teoria, seria possível […] É uma nova composição da matéria”, alinha o advogado. “Interessante”, prosseguem os juízes. “Se podemos falar da mais pequena unidade do cromossoma, podemos falar de todas as partes do corpo humano, não? Por exemplo, a pessoa que descobriu o fígado?”
Nem o absurdo, como seria de esperar, faria Castanias desistir da tese: a diferença entre o fígado ou o rim, a vesícula biliar - “escolham o órgão que quiserem”, diz aos juízes - é que fora do corpo são a mesma coisa. Mas as respostas lógicas também não diminuíram o tom céptico do colectivo. “Se tirar um pedaço do rim ou do fígado, diz que não é patenteável. Mas se tirar um gene e cortar um pedaço já é?” Apesar da aparente ligeireza, a matéria é mesmo mais distante do comum mortal que bolachas e brincos para ter resposta fácil. Há ainda outro peso na balança, reconheceram os juízes: “Porque não havemos de nos preocupar por a Myriad e outras empresas dizerem que então vão deixar de fazer este trabalho?”
A decisão é esperada até à primeira semana de Julho.

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