quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

SNS. Viabilidade é tarefa para depois da troika e portugueses vão ter de decidir do que querem “abdicar” | iOnline

SNS. Viabilidade é tarefa para depois da troika e portugueses vão ter de decidir do que querem “abdicar” | iOnline

Medidas em curso não chegam para assegurar sustentabilidade do SNS a prazo, admite secretário de Estado da Saúde. Mudanças de fundo em aberto.

O Memorando, guião da austeridade, caminha para o segundo aniversário, e a troika está em Portugal para saber em primeira mão onde é que o governo pretende cortar 4 mil milhões em prestações sociais. É neste cenário em construção, e depois da liquidação de 1500 milhões de dívida antiga em 2012, que o Ministério da Saúde tem repetido que, apesar das medidas tomadas, a sustentabilidade do SNS não está ainda assegurada. Ontem tornou-se oficial que não vai estar nos próximos meses.
Na abertura da conferência “O Sistema de Saúde para além de 2014”, uma iniciativa apoiada pelo governo no sentido de recolher os contributos da academia para as reformas em curso no SNS, o secretário de Estado adjunto do ministro da Saúde, Fernando Leal da Costa, deixou claro que a questão da viabilidade do sistema é matéria para depois do programa de assistência económico-financeira, isto quando já havia sinais de que mudanças de fundo no sistema ficariam para 2014 e, eventualmente, para uma próxima legislatura. O estudo da Fundação Calouste Gulbenkian no sentido de propostas concretas para reformar o SNS também só será conhecido no Verão de 2014 e Macedo apontou eventuais aplicações para depois de 2015.
“Portugal precisa de decidir por si, com todos, para onde quer ir e como lá chegar. Se não o fizermos, corremos o risco de termos decisões que não são tomadas só por portugueses”, disse Leal da Costa, referindo-se ao caminho do SNS pós-programa de ajustamento e desejando que de debates como o que se realizou ontem “saiam indicações sobre o mais importante que deve ser feito”. Como nas últimas intervenções sobre estas matérias, Leal da Costa falou dos princípios que o governo considera fechados: um SNS que continue a ser essencialmente pré-pago por impostos, menos hospitalocêntrico, mas com prestadores públicos de dimensão e diferenciados e que assegurem cobertura nacional, mais cuidados primários e continuados e mais prevenção.
Se a equação parece fechada, sobram desafios. “Há certezas que não podem ser escondidas. Temos de saber quanto estão dispostos a pagar e para quem, de que é que estão dispostos a abdicar para ter um SNS mais universal e geral”, disse, deixando antever que mesmo a reforma do Estado social terá de ir mais fundo que a reforma que esta semana o governo apresenta à troika. “O que é o Estado social? Referimo--nos à solidariedade ou a um Estado que captura a sociedade, a atrofia e a impede de crescer?”, questionou.
Na conferência, os participantes já sabiam ao que iam mas, a par da unanimidade de que as reformas necessárias ao sistema são consensuais, sobressai a de que nos últimos dois anos houve tempo perdido. A ex-bastonária dos enfermeiros, Maria Augusta de Sousa, desabafou no início da sua intervenção: “Vamos lá ver se é mesmo para 2014 e não passa depois para 2016”, referindo-se a este novo calendário. “Existe alguma estranheza e preocupação”, comentou Fernando Araújo, ex-presidente da ARS Norte. “Na área do medicamento fizeram-se inúmeros avanços, não sendo certo se serão sustentáveis”, disse. “A nível hospitalar falta a reforma de fundo, cujo plano estava previsto para publicar em 2012 e a aplicação durante o primeiro trimestre de 2013. As pessoas tinham a noção clara de que alguma coisa precisava de mudar. O facto é que quem está dentro no hospital sente que foi uma oportunidade perdida. As coisas não aconteceram. Temo que, agora com eleições autárquicas e maior insatisfação, não haja a mesma abertura.”
Artur Vaz, gestor do hospital de Loures, ou Fernando Regateiro, antigo presidente dos Hospitais da Universidade de Coimbra, transmitiram a mesma ideia. “Penso que andamos há 30 anos a dizer as mesmas coisas e está quase tudo na mesma. Esperamos que nasça luz”, disse Vaz. “Portugal sofre do experimentalismo contínuo, sem nunca tirar ilações”, criticou Regateiro.
Corporativismo e pressões foram algumas das resistências elencadas. “Porque é que não se fazem as coisas? Falta coragem política. Há dificuldade em assumir uma política que não seja dominada por interesses políticos, regionais e económicos que tornam o país refém. É preciso coragem para quebrar cumplicidades que travam a concretização de melhores pensamentos e planos”, disse José Fernandes e Fernandes, da Faculdade de Medicina de Lisboa. Leal da Costa saiu logo após as palavras de abertura, a que se seguiu mais um dia de debate. As conclusões, explicou a organização, serão entregues à tutela.
O que pensam os peritos
01 Um seguro?
“As equipas têm de competir pelo bem económico que é o tratamento da doença”, defende José Fernandes e Fernandes, director da Faculdade de Medicina de Lisboa. “É preciso uma agenda para a qualidade em saúde”, acrescenta. Para este especialista, há temas que não devem ser tabu na reforma, como pensar que a responsabilidade pública pela saúde não significa propriedade pública dos prestadores. Outra alternativa seria pensar num “seguro social obrigatório” e outros seguros complementares, que ditariam níveis diferentes de cobertura.
Reforma superficial
Desde 2001 que as responsabilidades dos hospitais são pensadas em rede, para distribuir tarefas e níveis de diferenciação. O balanço foi feito por Fernando Araújo, ex-presidente da ARS Norte: há seis redes para áreas centrais como cirurgia, ortopedia ou medicina interna a aguardar aprovação da tutela há um ano. Há 20 aprovadas, algumas desactualizadas. Não são alvo de auditorias nem há garantias de que a reforma hospitalar e o pagamento às unidades sigam este planeamento. Sem redes, considera, a reforma é superficial. “Falta articulação”, diz.
Médicos parados
“Há hospitais onde há profissionais que passam metade do tempo nas urgências sem fazer nada.” A crítica é de Artur Vaz, há 30 anos gestor no SNS e agora à frente do hospital de Loures. Para o administrador, a organização do trabalho nas unidades de saúde precisa de uma revolução, sobretudo nas urgências, onde defende que exigir a presença física de médicos de todas as especialidades é um desperdício de recursos. Criticou também o abuso de horas extra: “Há profissionais que se auto-escalam e fazem horas que ninguém lhes pede.”
800 milhões à mão
Para Fernando Regateiro, ex- -gestor de Coimbra, o modelo que junta cuidados hospitalares e primários, as unidades locais de saúde, é um bom exemplo que devia ser mais replicado, estimando uma poupança anual de 800 ME. Para todos os hospitais, diz, devia haver uma unidade autónoma de articulação com os centros de saúde. Queixa-se do abandono dos gestores, por vezes penalizados pelo Tribunal de Contas após terem seguido orientações da tutela, e da fraca cultura de avaliação de desempenho de unidades, “cada vez menos autónomas”.
Mais tarefas para os enfermeiros
“Estamos a matar moscas com bazucas.” A frase de Artur Vaz ilustra o que considera ser o desaproveitamento do investimento na formação de enfermeiros e técnicos, que continuam a ter no SNS tarefas reduzidas. Os peritos defendem o reforço do papel destes profissionais, para diminuir a carência de médicos, mas também para lhes permitir mais resposta noutras áreas. Vigilância de gravidezes de baixo risco e apoio na gestão de doença crónica foram algumas das áreas elencadas.
53 mil dias perdidos
Sollari Allegro, gestor do Centro Hospitalar do Porto, revelou que em 2012 se perderam 53 mil de trabalho na sua unidade por faltas – um absentismo de 7%. Os trabalhadores com contratos de função pública faltam mais vezes, e os com contratos individuais, aos quais dá um bónus salarial de 20% se não faltarem mais de um dia por mês, faltam menos por acidentes profissionais, problemas muitas vezes “irrisórios”, disse. Os informáticos são quem menos falta, talvez pela motivação, concluiu, defendendo incentivos em vez de exclusividade obrigatória.

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