segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Borges: "Somos um país dominado por interesses fortíssimos" - Dinheiro Vivo

Borges: "Somos um país dominado por interesses fortíssimos" - Dinheiro Vivo

Chegou ao volante do seu carro à hora marcada. Tinha pedido para adiar a entrevista umas horas porque surgira uma reunião com o ministro das Finanças. António Borges é consultor do governo. Cobra 300 mil euros por ano - que divide com uma equipa - para dar opiniões sobre privatizações, parcerias público-privadas (PPP) e financiamento da economia. O acesso a informação privilegiada não o retrai, solta-lhe a língua, embora agora pareça mais comedido e otimista. Assegura que há empresas a nascer por aí...Sente-se confortável com a definição de "não-ministro mais influente do governo"?
Isso foi uma invenção da comunicação social.
Acha normal que um governo tenha de recorrer a um consultor para tratar de assuntos como as privatizações e as PPP?
Não é normal, é corrente, é regular. Eu diria que é o contrário: um governo que avança para dossiês complexos sem ter consultores não está realmente a fazer o que é a sua obrigação. Todos os governos utilizam consultores. Por qualquer razão, optaram por me colocar numa posição diferente de outros consultores. Optou a comunicação social, porque eu não me sinto como um consultor diferente de outro qualquer. A minha empresa de consultoria, que tem um contrato com o governo, presta consultas só naquilo que o governo pede. Eu e os meus colaboradores damos o nosso contributo.
Além das privatizações e das PPP, alargou-se esse âmbito de consulta?
Não. Desde o princípio que o mandato foi bem definido e tem quatro dimensões: o financiamento da economia e o sector financeiro; as privatizações; as PPP e a quarta é a reestruturação do sector empresarial do Estado. Dentro deste vasto segmento de responsabilidades, o meu cliente, o governo, pede uma opinião nisto, nisto e nisto e, por acaso, não pede naquilo.
A sensação que ficou desde o início é que António Borges tinha ficado com pena de não ter sido escolhido para ministro, talvez para ministro da Economia. É verdade?
Isso é completamente falso. Não sei donde é que vêm essas noções. Eu tenho dito repetidamente que uma das coisas mais interessantes e mais importantes que se estão a passar no país é a mudança de gerações. É o facto de sermos governados por gente mais nova. É disso que o país precisa. As grandes mudanças, os grandes desafios em todos os países do mundo são feitos por gente de 40, 50 anos. Eu tenho a enorme sorte de poder dar o meu apoio como consultor, mas não tenho qualquer ambição. Seria totalmente desajustado que agora tivesse ambições de decisor político. Já tive, não consegui, agora não tenho.
Teve quando fez parte da direção de Manuela Ferreira Leite...
Exatamente.
Em relação a Álvaro Santos Pereira, não sente que conseguiria desempenhar um papel mais eficaz?

Não. Em primeiro lugar, eu sou consultor do governo e, entre outros, do ministro Álvaro Santos Pereira, portanto, não vou fazer quaisquer comentários, nem críticas de outra natureza ao que é o trabalho dele. Em segundo lugar, eu estou num plano completamente diferente. É evidente que um consultor tem sempre aquela frustração de dizer: "Se fosse eu a decidir, já estava decidido desta maneira assim e assim." Mas um consultor não decide; propõe, apresenta argumentos, tenta responder a perguntas e, depois, são eles os responsáveis e eles é que têm legitimidade para o ser.
Como trabalha com Passos Coelho?
Tenho reuniões relativamente frequentes com o primeiro-ministro... uma vez por mês, habitualmente, de troca de impressões sobre o que se está a passar nas áreas da minha responsabilidade. Tenho reuniões muito regulares com outros ministros e secretários de Estado mais ligados aos sectores de que falei: financiamento da Economia e privatizações.
Quanto cobra a sua consultora?
Isso é conhecido. É um montante anual de 300 mil euros. Para a equipa inteira, evidentemente.
As opiniões que assumiu sobre diferentes assuntos tornaram-se embaraçosas para o governo. Em relação à taxa social única, a certa altura utilizou a expressão "ignorantes" para definir os empresários. Acha normal um consultor ser tão agressivo?
Há aí várias dimensões. Em primeiro lugar, há muitas afirmações que eu vou fazendo que são classificadas como agressivas, embaraçosas ou polémicas pela comunicação social. Não sei se estou necessariamente de acordo com essa classificação. Ponto número dois: essa é a diferença entre um consultor e um político; um político quando está a falar tem sempre uma carga política completamente diferente do que a que tem uma pessoa independente como eu, que não tenho responsabilidades políticas nem tenho de prestar contas perante o eleitorado. É evidente que não me veem a fazer comentários senão nas áreas em que tenho responsabilidades como consultor. O caso da televisão é um caso muito interessante porque aquilo que eu disse foi justamente por indicação do governo. As indicações que me deu o ministro Relvas foram as de que nós não podíamos continuar a avançar neste dossiê sem prestar contas à opinião pública. E foi ele o primeiro a dar informação.
Foi surpreendente ter sido António Borges a anunciar qual poderia ser o modelo de privatização da RTP...
Mas não fui eu. Se quiser dar-se ao trabalho de rever a entrevista [à TVI], a entrevistadora começa por perguntar: "Saiu hoje à tarde esta notícia assim e assim, é verdade?" E eu esclareci. A notícia foi dada pelo senhor ministro, como é sua responsabilidade, saiu nessa mesma tarde numa cadeia online e depois eu tive a ocasião de esclarecer. Não há iniciativa nenhuma minha. Agora, é evidente que todos os assuntos relacionados com a televisão são, por natureza, polémicos.
Já este ano, o ministro Relvas suspendeu o processo de privatização da RTP. Essa notícia surgiu no mesmo dia em que o senhor disse que a ideia continuava a ser passar a gestão para o sector privado. Como explica esta descoordenação?
Não é descoordenação nenhuma. Eu sou consultor. Quem decide são os políticos, os governantes. Eles é que têm essa responsabilidade. Eu fiz um certo e determinado conjunto de análises, aliás, não sozinho, porque havia uma série de outros consultores envolvidos. Estudámos cenários, fizemos propostas, várias coisas em cima da mesa para o governo escolher. Em última instância, o governo escolheu que não era o momento certo para fazer a privatização. Decidiram fazê-la mais tarde. Mostra bem que eu não sou o 13.o ministro. Pelo contrário, nem estou ao corrente da agenda do Conselho de Ministros.
Relvas geriu bem ou mal o dossiê?
Não vou fazer comentários sobre as pessoas que são minhas clientes. O ministro Relvas tem um dossiê difícil, que geriu da forma que lhe pareceu a melhor. É um tema polémico e as razões pela qual ele é polémico são bastante infelizes, no meu entender, porque não são do interesse nacional.
Mas é evidente que é sempre uma missão ingrata. Na minha opinião, é um dos dossiês importantes que continuam em cima da mesa.
O que são "razões infelizes"?
A RTP é um problema. A RTP no seu conjunto, não é só a televisão, as rádios também, é um problema muito grave. Estamos numa situação em que pedimos sacrifícios tremendos e andámos a gastar 300 milhões de euros por ano durante dez anos com aquela empresa. O que temos para mostrar? Uma coisa de grande qualidade, que nos encha de orgulho? Desculpe, mas não! A RTP tem um problema muito sério de audiências.…
A RTP já foi líder. Tem vindo a cair ao longo do último ano e meio. O que, aliás, coincide com este governo...
Pois… se eu gastar ilimitadamente sem ter preocupações orçamentais, faço subir as audiências, basta que eu compre as transmissões de futebol a preço de ouro que as audiências sobem logo extraordinariamente e esse é que é o problema que está aqui em cima da mesa. Como é que nós podemos estar a pedir às pessoas que paguem os seus impostos todos os dias, para depois estarem a gastar 300 milhões de euros por ano numa coisa que não é uma prioridade. Eu sou um defensor do serviço público, nem posso deixar de ser, está na Constituição, é para cumprir. Mas o serviço público não é isto, não tem nada que ver com isto. Nós estamos a falar de como se gere bem uma cadeia de televisão, dentro dos meios que são aqueles que estão à nossa disposição e de uma forma que corresponda ao interesse da generalidade dos portugueses. Há modelos muito diferentes daqueles que estão em cima da mesa. O que está hoje em jogo é que há um grande conjunto, quer de interessados na indústria da comunicação social quer de profissionais, que não quer mudar nada... Eu sou um grande ouvinte da Antena 2, gosto imenso da Antena 2. Tem 0,5% da audiência. Vocês acham bem que as pessoas andem a pagar os seus impostos para eu poder ter o privilégio de ser um dos 0,5% que têm direito a ouvir a Antena 2? Isto tem que ser repensado, até em termos de justiça social.
Vamos falar de outro assunto: os CTT. Os Correios funcionam, sobretudo nas zonas de província, como uma espécie de bancos, é lá que muitas pessoas vão levantar as pensões. É um serviço público que pode ficar em risco com a privatização?
Não, pelo contrário, essa é a grande área de expansão dos Correios de futuro e muitos dos potenciais interessados nos Correios em Portugal pensam precisamente na capacidade de expansão de todo um conjunto de serviços. Isso é um exemplo muitíssimo interessante: os correios, como sabe, são uma atividade em redução, as pessoas cada vez mandam menos correio. Informou-me ainda hoje o conselho de administração dos Correios que um português, em média, manda duas cartas por ano. Existe um pequeno número de grandes empresas que são responsáveis pela maioria do correio. Por força da redução dos correios, muito provavelmente, se não se fizer nada, a rede tem de se reduzir muitíssimo, com prejuízo geral, porque não há procura. Há estações dos Correios com uma receita diária de quatro ou cinco euros. Como é possível manter estas coisas a funcionar? O futuro está em pegar naquela belíssima infraestrutura, naquela boa organização que até tem alguma tecnologia muito cobiçada por esse mundo fora, e acrescentar todo um conjunto de oportunidades de negócio que vão tornar viáveis coisas que de outro modo teriam de ser encerradas.
Serviços financeiros?

Por exemplo. Já existe a famosa payshop, que funciona muito bem, e todo um conjunto de serviços financeiros que podem ir muito longe. Nós temos uma posição muito interessante em África, em Angola e Moçambique, onde há uma expansão extraordinária a fazer em todas estas áreas, porque aí, sim, não há uma infraestrutura bancária ainda desenvolvida, as pessoas têm dificuldades em receber os seus pagamentos. Os nossos Correios podem ter potencial de desenvolvimento. O que nós não podemos é manter os Correios espartilhados naquilo que são hoje. Devemos aproveitar a privatização para lhe dar outro fôlego.
Já tem conhecimento de manifestações de interesse nos CTT?
Sim, desde que o programa de privatizações foi anunciado que começaram a aparecer interessados, até para a televisão, pessoas muito sérias, portugueses de grande qualidade, não vou revelar quem, evidentemente. Nada do que se conta por aí é verdade, que aquilo é para entregar a angolanos. A mesma coisa nas águas.
A privatização da CP Carga e a concessão dos transportes públicos urbanos levantam o mesmo tipo de dúvida: vão implicar uma menor qualidade dos serviços?
O grande objetivo é a gestão privada obter melhores resultados do que a gestão pública e esses exemplos são absolutamente claros e evidentes.
No caso da CP, há um problema em particular: uma dívida de 3500 milhões de euros.
Isso é um problema financeiro...
Essa dívida ficará do lado do Estado?
Isso não lhe posso dizer. Aliás, é um tema que não se começou a tratar.
Outra das privatizações que estão sobre a mesa é a rede de gestão de resíduos. O Estado vendeu a rede elétrica nacional (REN). Estamos a falar de infraestruturas estratégicas. Não há risco neste caso?...
Nenhum. Estando em mãos de privados certas redes que são de facto monopólios naturais. Tem de haver uma regulação muito forte que realmente garanta que há um comportamento que corresponde ao interesse nacional. Quanto mais essencial é a infraestrutura, mais importante é esta dimensão. Mas isto não tem nada que ver com gestão privada, e os exemplos que nós vemos pelo mundo fora são esclarecedores. Países com redes fabulosas que funcionam de forma muito superior ao que nós aqui conseguimos e que estão em mãos privadas. Há um regulador que determina as regras.
Um mau exemplo referido é o do caminho-de-ferro em Inglaterra.

Pois eu vivi em Inglaterra dez anos e não tenho essa opinião.
Houve acidentes, má manutenção; não era só uma opinião...
Não sei se esses números são fiáveis. Um dia há um fulano que vai por uma estrada, em Inglaterra, à noite e adormece ao volante e sai da estrada e, por azar, ia a passar numa ponte, em cima de uma linha de caminho-de-ferro, e caiu na linha. E vinha um comboio que esbarrou contra ele e, por cúmulo do azar, vinha um outro comboio em sentido contrário e dá-se um crash extraordinário, uma coisa de proporções realmente gravíssimas. A culpa é da privatização?! Quer dizer, acho que isto é caricato, chega a ser caricato, quando se põem as coisas nestes termos. Estou a referir-me a um caso em concreto, em Inglaterra, que foi um escândalo extraordinário. Isto é um acidente gravíssimo, tristíssimo, mas não tem nada que ver com a privatização. Eu fartei-me de andar de comboio em Inglaterra nos dez anos que lá vivi e fui extraordinariamente bem tratado, porque há uma orientação para o cliente, uma vontade de servir, de atrair as pessoas, de as cativar. Também vivi em França muitos anos, com comboios excelentes. Também gosto imenso de andar de comboio na Suíça, tem comboios fantásticos, a qualidade é belíssima. Mas o contribuinte paga, paga, paga, paga, paga.
Os reguladores em Portugal não têm revelado capacidade para executar a sua função a horas. Mais um risco...
Isso é uma questão interessante porque é uma das grandes prioridades do país, e eu acho que este governo tem dado passos nesse sentido: reforçar as instituições e reforçar os reguladores. Há áreas em que os governos têm poder de mais, poder arbitrário, decidem como querem. Às vezes não são os governos, são as direções-gerais ou são os funcionários - e não pode ser. Um país moderno não é assim. É preciso ter reguladores independentes, competentes, fortes e com experiência. Isso faz-se ao longo do tempo, vai-se fazendo e estamos a dar passos nesse sentido. Eu acho que, se há área onde tem havido progresso nestes últimos tempos, é no reforço das entidades reguladoras, quer em termos de competência quer em termos de prestígio.
Outra privatização que andou no ar: a da Caixa. Ainda faz sentido?
Julgo que aquilo que está nas intenções do governo, no programa do governo, no acordo entre os dois partidos, é a abertura do capital da Caixa ao sector privado. Não é gostar de perder o controlo da Caixa, pelo menos por enquanto, mas é a abertura do capital ao sector privado. Isso é uma medida com a qual eu estaria completamente de acordo. O timing exato para se fazer isso tem de ser bem escolhido.
Mas porque é positivo? Estamos a falar do maior banco português, com um peso muito grande na nossa economia. Na prática é como se fosse um regulador informal...
Não é um regulador, mas podia ter, devia ter um efeito disciplinador do mercado. A Caixa levanta um problema muito sério hoje em dia. Nós oscilamos entre governos que dão instruções à Caixa Geral de Depósitos todos os dias e dizem: "Faz favor de dar um empréstimo àquele funcionário do partido, que eu quero que você lhe dê um empréstimo." Há outros governos que dizem: "Eu não intervenho em nada, não quero intervir em nada." E, portanto, a Caixa fica sem ter de dar contas a ninguém...
Este governo indicou à atual administração que vendesse a participação na Cimpor. Aliás, foi uma decisão muitíssimo polémica.
Tenho muito gosto em falar desse assunto, porque foi um dos assuntos sobre o qual me pediram a minha opinião. O governo é o dono da Caixa, a Caixa não pode dizer: "Tenho 300 milhões de euros envolvidos numa participação e agora vou decidir, por minha livre iniciativa, se os vendo ou não." Aí, de facto, o acionista tem uma palavra... Eu acho que era muito importante que houvesse por parte da Caixa a responsabilidade de dizer aos seus acionistas, mesmo minoritários, que está a tomar estas decisões por estas razões: damos estas justificações, é esta a nossa lógica e submetemo-nos à vossa aprovação. Eu vivi muitos anos em França, há muitos modelos, em França, de empresas que são controladas pelo Estado mas que estão cotadas na Bolsa. Eu fui administrador de algumas dessas empresas e tínhamos obrigação de prestar contas  não só ao Estado, mas também aos investidores privados. Isso é uma disciplina excelente para quem está a gerir. Obriga a regras, obriga a transparência, obriga a clareza, evita muita corrupção.
Não ficaria em causa a ideia de que a Caixa é uma espécie de banco-refúgio. O nível de depósitos da Caixa Geral de Depósitos subiu durante esta crise precisamente porque as pessoas sentiram que era um banco seguro.
Todos os bancos devem ser bancos-refúgio. O nível de depósitos subiu em todos os bancos portugueses.
Subiu mais na Caixa.
Subiu de forma mais substancial na Caixa porque é maior. Há uma grande vantagem em Portugal: as pessoas têm confiança no sistema financeiro. Ao contrário de outros países, os depósitos aumentaram, as pessoas trouxeram dinheiro do estrangeiro para Portugal, o que é notável. Não há dúvida de que temos um sistema seguro de depósitos que dá às pessoas tranquilidade. Isto tem de se manter.
Falemos do país. Até que ponto é que a sociedade será capaz de absorver um desemprego que caminha para 17%? Nas palavras infelizes de Ulrich, até quando aguenta ?
Não vou falar nas palavras infelizes do dr. Fernando Ulrich. Nós estamos num processo de ajustamento difícil, que tem custos pesados e que, infelizmente, não se distribuem de forma uniforme, mas que não são evitáveis. Isso é talvez uma das coisas mais importantes do que se está a passar em Portugal: é toda a gente ficar com a consciência de que, quando se cometem erros muito graves, se paga um preço muito alto e esse preço não há maneira de o evitar. A única coisa que o governo pode fazer é tentar minimizá-lo e é para isso que existe o Estado social; é por isso que ele está completamente, no meu entender, acima de qualquer questão. Vamos utilizar toda a panóplia do Estado social para que o custo do processo de ajustamento seja minimizado e distribuído o melhor possível. Agora, não se pode dizer, depois dos erros catastróficos que se andaram a fazer, que o desemprego devia continuar em 4% ou 5%, como estava no ano 2000. Eu julgo que a taxa natural de desemprego em Portugal deve ser muito baixa. Quando voltarmos a uma normalidade, estou convencido de que voltaremos a esses valores.
E para voltar à normalidade será necessário renegociar a dívida pública?
Não. Isso é um problema que desapareceu. Hoje toda a gente quer comprar a dívida pública portuguesa. A trajetória da dívida pública portuguesa está a estabilizar, não há qualquer dúvida sobre a sua sustentabilidade, senão não havia interesse em comprá-la como há. A forma como vamos resolver o problema é através da aceleração rápida do crescimento económico. Dívidas de 120% já existiram muitas vezes em muitos países do mundo.
Está sempre relacionada com a capacidade de crescimento do país…
Exatamente. A grande questão que está em cima da mesa é, ultrapassada esta crise, como é que vamos pôr o país a crescer a um ritmo à medida das nossas ambições. Não se esqueça de que em 1983-1985, quando o FMI cá esteve e fomos obrigados a seguir um programa de ajustamento que tem muitas coisas parecidas com este, a seguir tivemos 15 anos de crescimento super-rápido, muito acima da média europeia, de grande convergência. Foi pena termos desaproveitado. Podíamos ter feito grandes reformas nessa altura. A crise é sempre um momento de grande limpeza, em que há muita ineficiência que desaparece, isso já é absolutamente visível na economia portuguesa. Estamos a criar espaço para um grande conjunto de outras empresas inovadoras, criativas, exportadoras, competitivas, que já começam a aparecer por todo o lado e que, se tudo correr bem, vão pôr o país a crescer a um ritmo completamente diferente.
Disse há dias que o país já não precisa de mais austeridade. Pode explicar melhor?
Deixe-me esclarecer duas coisas: o que é a austeridade? A austeridade é viver dentro dos nossos meios. Temos uma certa capacidade de gerar rendimento, mantemo-nos dentro dessa capacidade, não nos endividamos, não vivemos do crédito. Este é o ponto fundamental. Isso já conseguimos. O país tem as suas contas equilibradas, já produzimos aquilo que consumimos. Isto foi um esforço extraordinário do país, em particular das famílias, que tiveram um aumento notável da taxa de poupança, muito para além do que se previa. Temos as contas equilibradas, já não precisamos de estar a apertar o cinto dramaticamente. Temos ainda um problema de finanças públicas a resolver e o compromisso com a Europa de reduzir o défice público. Todo o espaço que se criar por melhor gestão das finanças públicas abre espaço ao investimento e ao consumo. Esta é a grande questão. O que nós já fizemos é aquilo que custa mais: viver dentro dos nossos meios. Há um regresso ao realismo da parte da generalidade da população portuguesa; as pessoas caíram em si e perceberam que não podiam continuar a viver daquela maneira. Agora, [do ponto de vista do Estado] o mais difícil está por fazer: além de pôr o país nos carris, o que no meu entender já é o caso, como passamos a ter um crescimento rápido, como voltamos aos 4% de desemprego?
Como?
Com um conjunto de reformas de fundo, que são muito mais difíceis de fazer porque essas são mais exigentes, são complexas e sobretudo têm um problema dramático que é a resistência brutal dos interesses estabelecidos. Somos um país muito dominado por interesses fortíssimos. Todos aqueles que foram beneficiados pelas políticas económicas dos últimos anos: são corporações, são empresas, são profissões, sindicatos.
Que empresas e que grupos?
Não vou nomear a empresa A, B ou C, como deve calcular. [Empresas] que prosperaram graças a políticas orientadas para o mercado interno, protegendo-as da concorrência estrangeira, dando-lhes situações de privilégio. Sindicatos que não têm condições acessíveis à generalidade dos trabalhadores portugueses. Corporações profissionais que têm estatutos que lhes permitem rendibilidades altíssimas por razões de privilégio.
Quais?
Somos um país em que há interesses extraordinariamente fortes que se mobilizam muito bem para bloquear a mudança e que tornam este país muitíssimo conservador. E é isso que pode ser o obstáculo ao progresso.
Essas reformas que referiu produzem efeitos só a longo prazo…
Não necessariamente... Tem razão, algumas levam o seu tempo a fazer efeito. Estávamos, há bocadinho, a falar em construir instituições fortes e isso não se faz de um dia para o outro, mas há outras que são bastante rápidas. Portugal tem uma capacidade de ajustamento rapidíssima, somos uma economia superflexível. Se os incentivos forem postos no lugar certo, as pessoas respondem imediatamente e já está a acontecer. Toda esta viragem da economia para o sector exportador, para a competição externa, já é visível por todo o lado.
O governo prevê uma recessão de 1%, o Banco de Portugal (BdP) já fala em quase 2%. Acredita na previsão do governo ou na do BdP?
Olhe, eu não sou especialista de previsão à décima ou à centésima. O Banco de Portugal tem as suas razões para ser mais conservador. Pode haver uma crise internacional que nos dificulte as coisas ainda mais... Não é esse o ponto. Estou convencido de que há condições para que o país este ano já esteja a crescer e que 2014 seja um ano de crescimento forte.
Forte?
Forte, de aceleração para uma tendência que pode ser 3%, 4%, 5% a prazo.
O governo prevê 0,8% para o próximo ano e 1,8% nos dois seguintes…
Pois, eu sou muito, muito mais confiante do que isso e há previsões dessa natureza, da União Europeia e do FMI, que eu acho extraordinariamente conservadoras. E não é uma questão de confiança cega nas capacidades dos portugueses, é porque já o fizemos. Em 1983-1985, tivemos um programa duro de ajustamento e depois tivemos crescimento rapidíssimo. Porque é que não somos capazes de fazer o mesmo? O país hoje é muito melhor do que era em 1985.
Está em cima da mesa um corte de 4 mil milhões no Estado social. Quais as áreas em causa?
É isso justamente o que eu chamava as questões verdadeiramente difíceis. Em primeiro lugar, deixe-me dizer que isso é um corte verdadeiramente marginal. Nós já fizemos cortes muito maiores nestes dois últimos anos. Portanto, já estamos na ponta final. A questão dos 4 mil milhões é, para mim, uma questão acessória. A questão de fundo é saber se vamos fazer reformas, porque os grandes cortes que se fizeram até agora, que foram cortes brutais na despesa pública, foram relativamente horizontais, sem muita seletividade. Agora, o que é preciso é reformar o sistema e há muitas opções. O relatório do FMI apresenta opções que dão para cortar 15 mil milhões e muita panóplia para escolha. Eu acho que a escolha é muito simples: é ir à Europa, aos nossos parceiros europeus, ver o que há de melhor e adaptar ao caso português. Não estamos a falar em modelos radicais, diferentes, dramáticos. Não. Há muita coisa bem feita na Europa, só temos de adaptar a Portugal.
Isso, na prática, quer dizer o quê?
Na Suécia, que tem um Estado social muito mais generoso do que o nosso e mais caro, as pessoas também estão dispostas a pagar mais impostos por isso. Mas não há abuso, não é só o nível de exigência no Estado social, é também o nível de exigência nas empresas. Não há uma empresa a que seja permitido sobreviver se não for rentável, produtiva, eficaz. É este equilíbrio que torna as coisas possíveis. Nós querermos ter em Portugal um Estado que gasta com tudo e com todos, sem grande critério, de uma forma às vezes injusta e, ao mesmo tempo, permitir esbanjar biliões de euros em capital mal gasto, despendido de forma não produtiva.
Onde é que estamos a gastar mal o dinheiro?
Nestes últimos dez anos, tivemos as taxas de investimento mais altas da Europa, com o crescimento praticamente zero.
O investimento está a cair desde 2000 e nos últimos três anos, se contarmos com a previsão para este ano, caiu 50%...
Felizmente, porque isso a que o senhor chama investimento não é investimento, é esbanjar dinheiro, é queimar dinheiro. Aquilo que consiste em gastar dinheiro em coisas não produtivas é uma grande carga para as gerações futura. Temos de o pagar e não temos maneira de o pagar. Isso não é investimento. O investimento brutal que foi feito em infraestruturas em Portugal não tem a mais pequena justificação económica; o investimento que foi feito por muitas empresas no sector privado, debaixo de situações de proteção e de ausência de concorrência estrangeira, não é compatível com a Europa.…

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