Num espaço de 19 meses roubaram mais de uma centena de grandes quadros impressionistas. E saíram impunes.
Na década de 1920, Paul Roux não adivinhava o sucesso que o destino lhe tinha reservado. Quando pensou em abrir um negócio em Saint-Paul-de-Vence, nunca imaginou que a pequena Estalagem Colombe d’Or se transformasse num importante ponto de encontro de pintores impressionistas. Artistas como Matisse, Utrillo ou Bonnard começaram a oferecer-lhe quadros quando não tinham dinheiro para pagar a conta, num sistema de senhas de refeição. Em 1960, algumas das pinturas valiam verdadeiras fortunas e François Roux – que entretanto sucedera ao pai no negócio – não tinha dinheiro suficiente para segurar a enorme colecção de arte. Talvez cientes desse facto, um grupo de ladrões arrombaram uma janela da estalagem na noite de 31 de Março e levaram 20 quadros, entre os quais duas telas de Picasso, uma de Modigliani e outra de Miró. O assalto foi avaliado em mais de 750 mil libras.
Na verdade, este era já o terceiro grande roubo de obras de arte num espaço de apenas três meses e só na zona da Riviera francesa. O primeiro assalto acontecera a 11 de Janeiro em Villefranche-sur-Mer, nos arredores de Nice. Foram roubados 30 quadros de pintores impressionistas da casa de um conhecido negociante de arte, Armand Drouant. A 23 de Março, novo roubo, desta feita ao Museu Municipal de Menton, de onde desapareceram sete telas. Entre as obras furtadas estavam um retrato de Modigliani e outro de Bettini, além de quadros de Soutine, Utrillo e Picasso.
Por isso, quando a polícia foi chamada à Estalagem Colombe d’Or no primeiro dia de Abril, os inspectores já sabiam que se tratava de mais um assalto de um grupo perfeitamente organizado e que, com o tempo, foi passando a ser reconhecido por Bando de Marselha. No mês anterior tinham sido detidos dois homens, Roger Cardinale e Jacques Rouze, suspeitos de pertencerem ao grupo. Mas a polícia estava empenhada em guardar a sete chaves toda e qualquer informação sobre o caso – o que provocou uma onda de boatos. Contava-se nos jornais, por exemplo, que François Roux, o dono da Estalagem Colombe d’Or, aceitara pagar um resgate aos habilidosos ladrões e que os polícias tinham comparecido ao encontro – mal sucedido – vestidos de freiras. De qualquer forma, a imprensa era unânime: o Bando de Marselha ainda estava à solta e os dois homens detidos não passavam de meros peões irrelevantes no meio de uma complexa teia de perigosos ladrões.
Pouco tempo depois, em Julho, o alegado cabecilha do grupo, conhecido por Guidicelli, apareceu morto, o que levou a opinião pública a acreditar que não existia um bando, mas sim dois, e que agora andavam a disputar o espólio roubado. A partir da década de 1950, com a criação da Interpol, a partilha de informações entre as polícias conheceu um grande avanço e, no que se refere às obras de arte, todos os negociantes eram avisados, em tempo útil, sempre que havia um roubo. Por isso, rapidamente chegaram à polícia francesa relatos de negociantes de Génova e de Milão que garantiam ter visto os quadros roubados em Villefranche e Menton. Pela descrição que fizeram do homem que os tentara vender, chegou-se a um nome: Giovanni Pilisi, 54 anos, natural da Sardenha.
A ajuda do padre Já em 1961, e enquanto a polícia andava no encalço do italiano, a divisão de Marselha recebeu o telefonema de um padre, que recusava identificar-se, a contar que um homem se tinha ido confessar à igreja e lhe pedira ajuda para devolver “uns objectos” ao seu legítimo dono. Dias depois, o comandante da polícia, Lavalette, recebeu um talão de depósito de bagagens e foi dar com 19 dos 20 quadros da Estalagem Colombe d’Or na estação de comboios de Saint-Charles.
Em Dezembro, sem novos desenvolvimentos que acalmassem a fúria da imprensa – que chegou a afirmar que a história do padre teria sido uma invenção da polícia, que estaria completamente desnorteada e sem pistas –, os supostos membros do grupo eram tratados com alguma benevolência pelo tribunal. De tal forma que Cardinale chegou mesmo a ser absolvido pelo juiz, que disse ter tido em consideração o facto de os cabecilhas ainda andarem à solta.
E o magistrado tinha razão: os assaltos tinham continuado, apesar das detenções. A 13 de Abril registara-se uma tentativa falhada de roubo à casa do coleccionador Aeme Maeght, em Saint-Paul--de-Vence. Os ladrões levaram obras avaliadas, à época, em 625 mil libras, mas foram vistos por uma patrulha da polícia a saltar o muro. As telas foram recuperadas.
Contudo, o falhanço não demoveu o bando. Em 1955 tinha sido inaugurado em St. Tropez um dos mais importantes museus de arte moderna da Europa, o Annonciade. Na noite de 5 de Julho, o grupo não só conseguiu entrar no edifício, como também teve tempo para, calmamente, seleccionar as melhores e mais valiosas obras da colecção. No total foram roubados 57 quadros – entre eles o célebre “Mulher à janela”, de Matisse. Dez dias depois do roubo, o curador do museu, Ségonzac, recebeu um pedido de resgate no valor de 1,5 milhões de libras. Mais: passadas duas semanas, os ladrões enviaram-lhe uma nova mensagem a dizer que, se o montante não fosse pago, os quadros seriam destruídos. Para impressionar enviaram, juntamente com a carta, um pedaço de uma das aguarelas furtadas. Nos dias que se seguiram, o curador tentava desesperadamente, e em segredo, reunir o dinheiro. Mas todos os dias lhe eram enviados pequenos bocados do mesmo quadro. Quando já eram suficientes para os poder montar, como um puzzle, o homem, de 76 anos, reconheceu uma tela que ele próprio pintara, “Uma vista do porto de St. Tropez”, também em exposição no museu.
Entretanto, o Bando de Marselha voltava a atacar, a 31 de Julho, na Galeria Art de France, em Cannes. O assalto foi avaliado em 50 mil libras – valor elevado, mas incomparavelmente menor que o do golpe seguinte do grupo, há muito em estudo.
No Pavilhão de Vendôme, em Aix-en- -Provence, preparava-se uma gigantesca exposição de telas de Cézanne. Tão importante que até tinha sido pedido emprestado ao Louvre o quadro “Os Jogadores de Cartas”. Devido aos assaltos dos últimos meses, a segurança prometia ser rígida. Mas inexplicavelmente, na manhã do dia 31 de Agosto de 1961, um domingo, só havia um guarda de plantão – que jurou a pés juntos não ter sequer ouvido os ladrões entrarem no pátio de uma escola colada ao pavilhão. Em menos de nada, o Bando de Marselha conseguia concretizar o roubo mais valioso de todos: 3,75 milhões de libras de uma só vez. Para trás só deixaram uma única pista que veio a revelar-se inútil para a polícia: um conjunto de amorosas pegadas de amoras, que os ladrões tinham pisado acidentalmente nos jardins do pavilhão. O guarda não se apercebeu de nada, a polícia ficou furiosa, os proprietários dos quadros falavam em morrer e o ministro francês dos Assuntos Culturais, André Malraux, exigiu publicamente a recuperação dos Cézanne. Estava em causa a honra da França.
Graças a um rasgo de sorte, e duas semanas depois, Giovanni Pilisi foi reconhecido ao tentar vender alguns dos quadros em Itália. Entretanto, os ladrões exigiram um novo resgate, desta vez à companhia de seguros austríaca que havia segurado as obras da exposição de Cézanne. O bando exigia 1,75 milhões de libras, mas a polícia recomendou que o resgate não fosse pago, apesar das ameaças de destruição das obras. O bando estava frustrado: se destruísse os quadros, todos os esforços teriam sido em vão. Por isso, reduziram a exigência para 875 mil libras e o resgate foi pago.
O pacto nunca confirmado Em 1962, a polícia de Marselha recebeu uma queixa sobre movimentações suspeitas em redor de um carro estacionado no centro da cidade. Quando a patrulha se deslocou ao local, percebeu que se tratava de uma viatura roubada pouco tempo antes. E, aparentemente, era o dia de sorte dos agentes: no banco de trás foram encontradas oito telas de Cézanne, embrulhadas em oito maços de jornal. O carro continuou debaixo de vigilância cerrada, mas ninguém foi apanhado. Nos salões de Paris, envenenados pelo que se escrevia nos jornais, as fofoquices cresciam. O mundo da arte estava convicto de que o governo fizera um acordo com o bando de Marselha: teria sido concedida imunidade aos ladrões em troca da restituição dos quadros furtados e da promessa de não voltarem a atacar.
O governo e a polícia nunca quiseram comentar o alegado pacto, mas o que é certo é que o ministro dos Assuntos Culturais recebeu uma carta, a 16 de Novembro de 1962, a informar que os quadros roubados em St. Tropez estavam num celeiro abandonado em Villiers-Saint- -George, a 80 quilómetros de Paris. Chegadas ao local, as autoridades encontraram os 56 quadros em cima de uma faixa de feno. Só faltava um: aquele que tinha sido cortado em pedaços para enviar ao curador do museu.
E nunca mais alguém ouviu falar do Bando de Marselha.
Na década de 1920, Paul Roux não adivinhava o sucesso que o destino lhe tinha reservado. Quando pensou em abrir um negócio em Saint-Paul-de-Vence, nunca imaginou que a pequena Estalagem Colombe d’Or se transformasse num importante ponto de encontro de pintores impressionistas. Artistas como Matisse, Utrillo ou Bonnard começaram a oferecer-lhe quadros quando não tinham dinheiro para pagar a conta, num sistema de senhas de refeição. Em 1960, algumas das pinturas valiam verdadeiras fortunas e François Roux – que entretanto sucedera ao pai no negócio – não tinha dinheiro suficiente para segurar a enorme colecção de arte. Talvez cientes desse facto, um grupo de ladrões arrombaram uma janela da estalagem na noite de 31 de Março e levaram 20 quadros, entre os quais duas telas de Picasso, uma de Modigliani e outra de Miró. O assalto foi avaliado em mais de 750 mil libras.
Na verdade, este era já o terceiro grande roubo de obras de arte num espaço de apenas três meses e só na zona da Riviera francesa. O primeiro assalto acontecera a 11 de Janeiro em Villefranche-sur-Mer, nos arredores de Nice. Foram roubados 30 quadros de pintores impressionistas da casa de um conhecido negociante de arte, Armand Drouant. A 23 de Março, novo roubo, desta feita ao Museu Municipal de Menton, de onde desapareceram sete telas. Entre as obras furtadas estavam um retrato de Modigliani e outro de Bettini, além de quadros de Soutine, Utrillo e Picasso.
Por isso, quando a polícia foi chamada à Estalagem Colombe d’Or no primeiro dia de Abril, os inspectores já sabiam que se tratava de mais um assalto de um grupo perfeitamente organizado e que, com o tempo, foi passando a ser reconhecido por Bando de Marselha. No mês anterior tinham sido detidos dois homens, Roger Cardinale e Jacques Rouze, suspeitos de pertencerem ao grupo. Mas a polícia estava empenhada em guardar a sete chaves toda e qualquer informação sobre o caso – o que provocou uma onda de boatos. Contava-se nos jornais, por exemplo, que François Roux, o dono da Estalagem Colombe d’Or, aceitara pagar um resgate aos habilidosos ladrões e que os polícias tinham comparecido ao encontro – mal sucedido – vestidos de freiras. De qualquer forma, a imprensa era unânime: o Bando de Marselha ainda estava à solta e os dois homens detidos não passavam de meros peões irrelevantes no meio de uma complexa teia de perigosos ladrões.
Pouco tempo depois, em Julho, o alegado cabecilha do grupo, conhecido por Guidicelli, apareceu morto, o que levou a opinião pública a acreditar que não existia um bando, mas sim dois, e que agora andavam a disputar o espólio roubado. A partir da década de 1950, com a criação da Interpol, a partilha de informações entre as polícias conheceu um grande avanço e, no que se refere às obras de arte, todos os negociantes eram avisados, em tempo útil, sempre que havia um roubo. Por isso, rapidamente chegaram à polícia francesa relatos de negociantes de Génova e de Milão que garantiam ter visto os quadros roubados em Villefranche e Menton. Pela descrição que fizeram do homem que os tentara vender, chegou-se a um nome: Giovanni Pilisi, 54 anos, natural da Sardenha.
A ajuda do padre Já em 1961, e enquanto a polícia andava no encalço do italiano, a divisão de Marselha recebeu o telefonema de um padre, que recusava identificar-se, a contar que um homem se tinha ido confessar à igreja e lhe pedira ajuda para devolver “uns objectos” ao seu legítimo dono. Dias depois, o comandante da polícia, Lavalette, recebeu um talão de depósito de bagagens e foi dar com 19 dos 20 quadros da Estalagem Colombe d’Or na estação de comboios de Saint-Charles.
Em Dezembro, sem novos desenvolvimentos que acalmassem a fúria da imprensa – que chegou a afirmar que a história do padre teria sido uma invenção da polícia, que estaria completamente desnorteada e sem pistas –, os supostos membros do grupo eram tratados com alguma benevolência pelo tribunal. De tal forma que Cardinale chegou mesmo a ser absolvido pelo juiz, que disse ter tido em consideração o facto de os cabecilhas ainda andarem à solta.
E o magistrado tinha razão: os assaltos tinham continuado, apesar das detenções. A 13 de Abril registara-se uma tentativa falhada de roubo à casa do coleccionador Aeme Maeght, em Saint-Paul--de-Vence. Os ladrões levaram obras avaliadas, à época, em 625 mil libras, mas foram vistos por uma patrulha da polícia a saltar o muro. As telas foram recuperadas.
Contudo, o falhanço não demoveu o bando. Em 1955 tinha sido inaugurado em St. Tropez um dos mais importantes museus de arte moderna da Europa, o Annonciade. Na noite de 5 de Julho, o grupo não só conseguiu entrar no edifício, como também teve tempo para, calmamente, seleccionar as melhores e mais valiosas obras da colecção. No total foram roubados 57 quadros – entre eles o célebre “Mulher à janela”, de Matisse. Dez dias depois do roubo, o curador do museu, Ségonzac, recebeu um pedido de resgate no valor de 1,5 milhões de libras. Mais: passadas duas semanas, os ladrões enviaram-lhe uma nova mensagem a dizer que, se o montante não fosse pago, os quadros seriam destruídos. Para impressionar enviaram, juntamente com a carta, um pedaço de uma das aguarelas furtadas. Nos dias que se seguiram, o curador tentava desesperadamente, e em segredo, reunir o dinheiro. Mas todos os dias lhe eram enviados pequenos bocados do mesmo quadro. Quando já eram suficientes para os poder montar, como um puzzle, o homem, de 76 anos, reconheceu uma tela que ele próprio pintara, “Uma vista do porto de St. Tropez”, também em exposição no museu.
Entretanto, o Bando de Marselha voltava a atacar, a 31 de Julho, na Galeria Art de France, em Cannes. O assalto foi avaliado em 50 mil libras – valor elevado, mas incomparavelmente menor que o do golpe seguinte do grupo, há muito em estudo.
No Pavilhão de Vendôme, em Aix-en- -Provence, preparava-se uma gigantesca exposição de telas de Cézanne. Tão importante que até tinha sido pedido emprestado ao Louvre o quadro “Os Jogadores de Cartas”. Devido aos assaltos dos últimos meses, a segurança prometia ser rígida. Mas inexplicavelmente, na manhã do dia 31 de Agosto de 1961, um domingo, só havia um guarda de plantão – que jurou a pés juntos não ter sequer ouvido os ladrões entrarem no pátio de uma escola colada ao pavilhão. Em menos de nada, o Bando de Marselha conseguia concretizar o roubo mais valioso de todos: 3,75 milhões de libras de uma só vez. Para trás só deixaram uma única pista que veio a revelar-se inútil para a polícia: um conjunto de amorosas pegadas de amoras, que os ladrões tinham pisado acidentalmente nos jardins do pavilhão. O guarda não se apercebeu de nada, a polícia ficou furiosa, os proprietários dos quadros falavam em morrer e o ministro francês dos Assuntos Culturais, André Malraux, exigiu publicamente a recuperação dos Cézanne. Estava em causa a honra da França.
Graças a um rasgo de sorte, e duas semanas depois, Giovanni Pilisi foi reconhecido ao tentar vender alguns dos quadros em Itália. Entretanto, os ladrões exigiram um novo resgate, desta vez à companhia de seguros austríaca que havia segurado as obras da exposição de Cézanne. O bando exigia 1,75 milhões de libras, mas a polícia recomendou que o resgate não fosse pago, apesar das ameaças de destruição das obras. O bando estava frustrado: se destruísse os quadros, todos os esforços teriam sido em vão. Por isso, reduziram a exigência para 875 mil libras e o resgate foi pago.
O pacto nunca confirmado Em 1962, a polícia de Marselha recebeu uma queixa sobre movimentações suspeitas em redor de um carro estacionado no centro da cidade. Quando a patrulha se deslocou ao local, percebeu que se tratava de uma viatura roubada pouco tempo antes. E, aparentemente, era o dia de sorte dos agentes: no banco de trás foram encontradas oito telas de Cézanne, embrulhadas em oito maços de jornal. O carro continuou debaixo de vigilância cerrada, mas ninguém foi apanhado. Nos salões de Paris, envenenados pelo que se escrevia nos jornais, as fofoquices cresciam. O mundo da arte estava convicto de que o governo fizera um acordo com o bando de Marselha: teria sido concedida imunidade aos ladrões em troca da restituição dos quadros furtados e da promessa de não voltarem a atacar.
O governo e a polícia nunca quiseram comentar o alegado pacto, mas o que é certo é que o ministro dos Assuntos Culturais recebeu uma carta, a 16 de Novembro de 1962, a informar que os quadros roubados em St. Tropez estavam num celeiro abandonado em Villiers-Saint- -George, a 80 quilómetros de Paris. Chegadas ao local, as autoridades encontraram os 56 quadros em cima de uma faixa de feno. Só faltava um: aquele que tinha sido cortado em pedaços para enviar ao curador do museu.
E nunca mais alguém ouviu falar do Bando de Marselha.
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